A CASA DO OSCAR

Tuesday, June 05, 2007

ARTIGO: ESSENCIALISMO GENÉTICO

Essencialismo genético: por que a genética do século 21 soa como a biologia do século 19?

(*)Athayde Motta

O novo episódio das guerras culturais sobre raça no Brasil usa a BBC, aprestigiosa rede de comunicação quase-pública britânica, como avalista dosdesejos de democratas raciais. Da forma como as várias notas foram publicadas naimprensa brasileira esta semana (veja, por exemplo, “Negros de origem européia”,O Globo, 29/05/2007), fica parecendo que a velha Auntie Beeb, como a rede é carinhosamente chamada, está de fato engajada em comprovar que negros brasileiros são irrefutavelmente mestiços, quer queiram ou não.

O subterfúgio é típico do clima de guerras culturais e se aproveita do desconhecimento da maioria da população brasileira sobre como o tema da raça é debatido fora do Brasil. Vamos, então, aos esclarecimentos. Em primeiro lugar, a BBC não está empenhada em descobrir percentuais deascendência genética nos seres multi-ancestralizados do planeta. Ela apenas tevefaro para produzir belos documentários (com um ranço levemente(pós-colonialista) sobre as pesquisas de DNA para consumo individual que pululamna Europa e nos EUA. E o motivo que desperta interesse é uma das facetas doracismo contemporâneo na diáspora africana.

Em um dos primeiros documentários sobre o tema, chamado Motherland: A geneticjourney ou “Terra-mãe: uma viagem genética” (veja a notícia de 2003, “Negrosbritânicos encontram suas raízes africanas”,http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/2757525.stm, em inglês), as pessoas retratadas realizavam viagens idílicas de volta às suas origens africanas, posto que narelação entre negros(as) e brancos(as) no Reino Unido está sempre implícito queos(as) primeiros não pertencem, de fato, àquele lugar. O diálogo ficcional aseguir é baseado nos relatos de vários(as) negros(as) britânicos(as) com quem já conversei e segue mais ou menos assim:“Dois premiados no Festival de Flores de Chelsea se cumprimentam orgulhosos desuas medalhas. O senhor branco se apresenta: ‘Olá, sou de Londres’. O senhor negro responde: ‘Olá, eu nasci em Moss Side, em Manchester’. Pausa. O senhor branco sorri e continua: ‘Mas de onde você é de verdade? ’Licenças poéticas à parte e descontado o fato de que a maioria dos(as) negros(as) britânicos(as) fez uma parada de uns dois séculos no Caribe na“viagem” entre a África e a Europa, a questão fundamental é que no assim-chamado“velho continente” e nos Estados Unidos, de maneiras diferenciadas em cadalugar, a origem e a ancestralidade (os dois termos não são sinônimos) são moedade valor em relações raciais desiguais. Daí a necessidade de se oferecer “evidências científicas” para que negros(as) britânicos(as) também tivessem um “lugar de origem” e uma ancestralidade quelhes fosse de alguma valia neste jogo.

Ao serem referenciadas em um lugar no globo, estas origens e ancestralidade tornam-se positivas e relevantes, embora o suporte científico seja apenas um suporte para uma construção histórico-social(porque é baseada de fato na experiência vivida e contada por meio de gerações, e não apenas em uma invenção). Poderia também ser chamada de ação afirmativagenética, pois acaba por dar aos genes africanos o mesmo “valor” que é formalmente atribuído aos genes europeus. Portanto, não me parece que a BBC ou empresas como AfriGeneas and Ancestry.com, que fornecem a pesquisa de DNA individual por preços que variam de US$ 350 a US$600, estejam interessadas em dar estofo ao conceito de multi-ancestralidade como doublê da velha democracia racial. A idéia primeira, romântica e alienada emrelação à desigualdade racial que expressa, é de proporcionar indicações, nãoapenas para negros(as), das prováveis origens territoriais de um indivíduo comconexões com outros lugares.

Não creio ser necessário explicar o quanto isto éindiferente se o indivíduo em questão é, digamos, descendente de italianos(as) da Móoca, em São Paulo, ao invés de um quilombola de Conceição das Crioulas, em Pernambuco. A outra questão fundamental é o descuido com que as matérias da imprensa defendem conclusões que os dados genéticos utilizados não necessariamente comprovam. Aqui entra a arrogância da tropa de choque dos(as) democratas raciais brasileiros(as), que não só se consideram empoderados(as) para impor umaidentidade coletiva à nação como ainda utilizam argumentos pseudo-científicos de uma forma que só pode ser chamada de escandalosa. Desta forma, é simplesmente mentira que o Brasil seja um dos países mais miscigenados do mundo (este “recorde” está provavelmente em alguma ilhota doCaribe). É igualmente errado dizer que qualquer negro(a) brasileiro(a) tem porcentagem X de genes europeus como se isto fosse uma marca de identidade positiva, sem referência histórica e de experiência vivida e, o que é pior, desrespeitando a identidade e experiência que o indivíduo possa ter.

Finalmente,se um negro(a) brasileiro(a) tem 40% de genes europeus, cabe a velha pergunta: E daí? Isto não apaga a memória da experiência de vida daquela pessoa, seja a da violência racial, seja a da cultura em sua comunidade, nem deveria ser considerada tão valiosa a ponto de virar notícia de jornal. O que a precisão e suposta objetividade da pesquisa genética acaba por criar é uma imposição de valor sobre a obsolescência do conceito de raça (tão mais falsaquanto mais se defende a democracia racial) e sobre a irrefutável mestiçagem de todos os seres (preferencialmente os de pele mais escura) porque assim disse aciência. Não foi assim que a biologia deu “suporte científico” à idéia da inferioridadede negros(as) africanos(as)?

Com sua histeria e táticas de Caveirão acadêmico,democratas raciais brasileiros(as) não têm contribuído de fato para o fim doracismo e da discriminação racial, mas podem se vangloriar pela criação doessencialismo genético. Não é pouco para quem, até ontem, acusava os movimentos
negros de essencialistas apenas por dizerem que eram...negros! e não moreninhos.

*Athayde Motta é coordenador do Ibase

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