QUILOMBO DO FRECHAL, RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE UM MODELO SOCIAL COLETIVO
Por Oscar Henrique Cardoso
Brasíila - No momento em que o Brasil discute a diversidade cultural como forma de construção de uma nova ordem mundial, a partir da valorização da cultura como estratégia e incremento da atividade econômica, mais uma bibliografia chega ao leitor para contribuir ainda mais no reforço em favor do conhecimento da história afro-brasileira. Lançado no dia 27 de junho último na Câmara Federal, o livro O Quilombo do Frechal, de autoria do antropólogo italiano Roberto Malighetti (Editora do Senado Federal), analisa a construção da identidade da comunidade remanescente do quilombo do Frechal. Localizada na baixada maranhense, Frechal foi a primeira comunidade quilombola a ser legamente reconhecida no Brasil. Roberto Malighetti, professor de Antropologia Cultural na Universidade de Milão-Bicoca é também um estudioso dos problemas brasileiros. Também lecionou na Universidade Federal do Maranhão, onde fez sua pesquisa de campo com particular atenção às culturas de origem africana. Entre suas obras, destaca-se O filósofo e o confessor - hermenêutica em Clifford Geertz (Milão, 1991), Do tribal ao global (em colaboração com U. Fabietti e V. Matera, Milão, 2000) e Antropologia aplicada (Milão, 2002). Em entrevista ao Informe Palmares, o antropólogo Roberto Malighetti ressalta que os leitores irão encontrar em seu trabalho temas de natureza teórica e também a oportunidade de familiarizar-se com uma história representativa de tantas outras comuns a atualidade, pois envolve ameaças, exploração, violência, questões legais e a intervenção de sindicatos e das organizações de defesa das populações "nativas" e do meio-ambiente, chegando ao surgimento de uma identidade coletiva capaz de fazer oposição a todo um modelo ditado de globalização:
Informe Palmares: O que levou o senhor a se dedicar no estudo do Brasil?
Roberto Malighetti: Foi um caso. Estava trabalhando no Iêmen, na Arábia do Sul com beduínos e tinha intersse acadêmico em desenvolver uma escritura etnográfica. Cheguei ao Brasil porque fui tirado do Iêmen pelo governo italiano. Sempre trabalhando pelo governo italiano cheguei aqui para atuar em projetos de desenvolvimento do governo italiano na baixada maranhense e lá, em 1992 conheci a realidade dos quilombolas de Frechal. Logo concentrou meu interesse porque foi uma grande oportunidade para trabalhar sobre a história do Brasil, da escravidão, da discriminação racial e toda a representação do Brasil em representação a democracia racial e a possibilidade de desenvolver o projeto epistemiológico. Depois, chegando aqui e conhecendo a problemática das comunidades negras rurais, comecei a ver a existência de um grande interesse político e social e também solidário, pois morei em Frechal por um ano inteiro. Nos anos seguintes vi que o povo que escrevo e que falo (quilombolas de Frechal) é amigo. Lá tenho um afiliado e um compadre. Entrei na comunidade, acompanhei sua luta e vejo que os interesses foram vários, científicos pela própria pesquisa epistemiológica e também científico por elaborar uma teoria da identidade, do que é uma identidade e ainda político, por comprovar o que é um quilombo no país.
Informe Palmares: O que mais lhe chamou a atenção em viver em uma comunidade remanescente de quilombo?
Malighetti: A coisa que mais me chamou atenção em Frechal foi a grande capacidade do povo de se juntar e de lutar contra a violência perpetrada por um fazendeiro sem precisar de ajuda de ninguém. Entidades como a Cáritas, o Centro de Cultura Negra e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos chegaram em Frechal depois que os quilombolas já tinham fundado, autonomamente, uma associação de moradores para lutar contra esse fazendeiro. O que mais me impressionou foi a capacidade não assistencialista, não passiva, mas realmente ativa do povo de Frechal, principalmente com destaque para as mulheres. O papel das mulheres foi enorme. Frechal é quilombo do Frechal principalmente por causa do trabalho das mulheres.
Informe Palmares: Em meio a toda a realidade tecnológica existente hoje e a tantos apelos sociais em favor da modernidade, a transmissão da sabedoria, dos fazeres e viveres tradicionais também permanece viva em Frechal?
Malighetti: Sim, Frechal é um caso que demonstra não precisar de tecnologia para chegar a desenvolver uma consciência do que são os seus interesses. Graças a pesquisas, estudos e apoios de amigos estamos construíndo uma escola em Frechal. Não é nenhum programa governamental, mas a iniciativa de amigos italianos está garantindo a construção desta escola. Lembro que a escola para nós não são os muros, que também podem ser de taipa, mas lembro que a escola é basicamente a formação de professores. Estamos lutando para fazer isso.
Informe Palmares: Qual a sua avaliação sobre os conflitos de terra existentes pela posse de terra aos quilombolas?
Malighetti: Essa é uma questão que entra diretamente em minha pesquisa, onde falo sobre a utilização de instrumentos jurídicos que infelizmente também na Constituição de 1988 vê se que falta muito. Não me lembro qual o capítulo que fala sobre os direitos dos índios. Sobre o direito à terra para descendentes de escravos, vejo que há poucos artigos. Lembro que há 10 anos atrás só existia o artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, quer dizer, nunca aplicado. Frechal foi um dos primeiros casos. Penso que o movimento, os advogados, a comunidade está querendo usar o que se tem à disposição. Este é um grande fator de construção da identidade.
Informe Palmares: O que o quilombo do Frechal tem a passar para todos nós, que somos urbanos, negros, que vivemos em grandes centros, em comunidades de periferia...
Malighetti: Frechal passa para nós, para todos os brasileiros, um assunto (quilombo) que não deve ser cultuado apenas em caráter histórico. O quilombo é um núcleo contemporâneo da resistência e um verdadeiro projeto de nova ordem política, fundada sobre a propriedade coletiva da terra, representando um contraponto as áreas capitalistas nas propriedades rurais. Por isso essa é a grande atualidade do termo quilombo, indicando não somente o desafio contemporâneo das comunidades negras rurais de todo o Brasil, mas também é para nós, na Europa, a expressão de como o local pode se contrapôr as tentativas hegemônicas e homologantes da globalização. Frechal demonstra não ser algo já concluído, como o poder internacional gosta de achar. Mostra que qualquer comunidade local, de qualquer grupo étnico pode se contrapor com sucesso.
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