A CASA DO OSCAR

Friday, June 08, 2007

ARTIGO: O DIREITO, A PROPRIEDADE E A TITULAÇÃO DE TERRAS QUILOMBOLAS

O direito, a propriedade e a titulação de terras quilombolas

Por Andressa Caldas e Luciana Garcia

Parece não ter limites a deturpação da Constituição em nome de interesses econômicos do grande capital, em especial do agronegócio e de construtoras de mega-projetos, num processo que busca excluir indígenas, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas e outras comunidades tradicionais de suas próprias terras. Recentemente, o professor Denis Rosenfield, articulista do jornal "O GLOBO", retomou argumentos racistas e escravocratas e ressuscitou a "ameaça comunista" para predicar que comunidades quilombolas teriam como "alvo preferencial" as empresas construtoras, num "processo cujo fim consiste na relativização total da própria liberdade".

Ao inverter os fatos e desvirtuar tanto o texto da Constituição sobre os quilombolas como o decreto que a regulamenta, o professor construiu toda sua argumentação com base em uma equivocada premissa. É a propriedade das comunidades quilombolas - garantida constitucionalmente - que vem sendo alvo de arbitrariedades (invasões, grilagens, despejos) por parte de algumas empresas e fazendeiros, e não o contrário.

No Brasil existem mais de 2.200 comunidades quilombolas, conforme pesquisa realizada em 2005 pelo Centro de Geografia e Cartografia Aplicada da Universidade de Brasília, totalizando cerca de 2,5 milhões de pessoas. O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 estabeleceu que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".

A norma constitucional, portanto, não se limitou a ordenar ao Estado que adotasse medidas necessárias à garantia da posse às comunidades étnicas, mas reconheceu diretamente aos quilombolas a propriedade definitiva sobre suas terras. A Constituição estabelece a obrigação do Estado em construir políticas públicas destinadas ao reconhecimento das comunidades quilombolas, bem como a delimitação, demarcação e titulação de suas terras.

Trata-se de um poder-dever porque compreende prerrogativas que constituem poderes para o administrador público, mas lhe impõem o seu exercício, já que a sua inércia atinge diretamente a sociedade. O Poder Público tem, portanto, o dever constitucional de estabelecer um programa específico de regularização fundiária para assentamento e para preservação das comunidades e da cultura quilombola.

O Decreto 4887/2003 regulamenta o procedimento de titulação das terras das comunidades de remanescentes de quilombos e estabelece um procedimento administrativo complexo e demorado, que se inicia com o auto-definição das comunidades enquanto remanescentes de quilombos. Cabe ao Incra, por meio do seu corpo técnico, realizar a identificação e demarcação do território, dando continuidade ao procedimento administrativo de titulação. O decreto envolve vários órgãos no processo de identificação e demarcação das terras, e estabelece uma fase de contraditório para que os interessados que se sintam prejudicados possam apresentar defesa.

Diferente do que dá a entender o professor Rosenfield, em nenhum momento o decreto estabelece que a autodenominação da comunidade enquanto remanescente de quilombos garante a imediata titulação do território reivindicado.

Não bastasse isso, em nome da economia de mercado, o professor sugere rasgar não apenas a Constituição, como também tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A auto-definição das comunidades enquanto remanescentes de quilombos, prevista pelo decreto, segue a linha da Convenção 169 da OIT ratificada pelo Brasil em 2002.

A despeito da previsão constitucional do direito à propriedade das comunidades de remanescentes de quilombos, levantamento realizado pela Comissão Pró-Índio verificou que apenas 58 áreas (pertencentes a 114 comunidades quilombolas) haviam sido tituladas até agosto de 2006. Embora estivessem sendo tramitados 310 processos administrativos de regularização de terras, apenas três áreas receberam títulos de propriedade na administração de Lula, até aquela data.

As comunidades quilombolas do Brasil não são apenas alvo da omissão estatal e da ação direta (muitas vezes violenta) de alguns empreendimentos do agronegócio, turísticos ou projetos desenvolvimentistas, mas também de um pensamento preconceituoso que não admite que pobres, e muito menos negros, tenham direito à propriedade neste país.

Andressa Caldas é mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR, mestre em Política Latino-Americana pela University of London e diretora Jurídica da ONG Justiça Global.

Luciana Garcia é mestre em Direito Público pela UERJ e advogada da ONG Justiça GlobalVeja também este artigo publicado publicado na seção de Opinião, no endereço http://oglobo.globo.com/opiniao

2 Comments:

  • At 9/6/07, Blogger Cé S. said…

    Muito bom ter publicado isso, Oscar.

     
  • At 10/6/07, Blogger Claudinha said…

    Oscar, bom dia. Este artigo foi publicado no Blogoleone, por isso parei aqui. Nós gaúchos conhecemos muito bem Denis Rosenfield e a sua fábrica de mistificações, deturpações e mentiras sempre a favor do capital. O que eu não sabia, era que as suas intervenções virulentas contra tudo o que possa ser de esquerda, ou tudo que possa vir contra o ideário neoliberal tivesse lugar fora do estado do RS. Abraço!

     

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